Há seis meses, a lama varreu do mapa o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG). A tragédia do dia 5 de novembro de 2015 segue viva na memória de quem viu imóveis e pertences sendo levados pelos rejeitos da barragem da mineradora Samarco. “Ninguém esquece. Tem gente que ainda precisa de psicólogo. O trauma é grande”, conta Antônio Pereira, 47 anos, representante das famílias atingidas na comissão formada para negociar a assistência com a mineradora.
No próximo sábado (7), os moradores de Bento Rodrigues vão fazer uma votação para escolher o terreno onde será reerguido o distrito. Há três propostas, mas Antônio Pereira confessa que uma delas deverá ter a adesão de pelo menos 80% das famílias. Conforme a Agência Brasil informou em março, o terreno pertence à siderúrgica Arcellor Mittal, que negocia sua venda à mineradora Samarco.
Apesar da ansiedade para o início da construção do novo Bento Rodrigues, os moradores não querem se desfazer do vínculo que tinham com o antigo local onde viviam. “É uma comunidade fundada por bandeirantes. Eu nasci ali, meus avós nasceram e se criaram ali. A gente lembra até dos nossos bisavôs. O novo Bento Rodrigues não será o Bento Rodrigues antigo. Terá outra história. E nós queremos manter a memória do que vivemos antes. As pessoas querem continuar lembrando, contando para os seus filhos e netos”, diz Antônio Pereira.
O desejo dos moradores chegou ao Conselho Municipal do Patrimônio Cultural (Compat). Na semana passada, o tombamento dos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu foram aprovados por unanimidade. O processo deve levar entre seis meses e um ano para ser concluído, mas a ideia é fazer do local um espaço museológico e cultural.
“Vamos preservar as manifestações culturais, o estilo de vida, a relação das pessoas com o espaço e um patrimônio material importante que precisa receber cuidados”, explica Ana Cristina de Souza Maia, presidente do Compat. O Portal do Patrimônio Cultural, que reúne os inventários de bens culturais materiais e imateriais de Minas Gerais, traz quatro registros dos distritos atingidos pela tragédia.
Bento Rodrigues tinha duas relíquias do século 18: a Igreja de Nossa Senhora das Mercês e a Igreja de São Bento. Essa última, segundo relatos, foi toda levada pela lama de rejeitos. Já em Paracatu, são inventariados a Capela de Santo Antônio e a Folia de Reis. Sempre no início do ano, a festa tradicional mobilizava os moradores do distrito.
A forma como o museu irá se instalar no espaço ainda vai ser objeto de estudo e discussão por arqueólogos, museólogos, arquitetos, historiadores. Uma das ideias é inspirada nos “museus do território”, que já existem em outras cidades históricas como Parati (RJ). Seu objetivo é documentar, interpretar e comunicar o processo de transformação territorial de uma localidade e seu modelo se diferencia do museu tradicional. A ênfase recai no espaço e na comunidade e não no edifício institucional e nos visitantes.
Memorial da tragédia
Se ainda há muito o que ser discutido acerca do projeto, uma questão é certa: haverá também espaço para relembrar o desastre. “A tragédia faz parte da vida das pessoas que viviam lá. E a história delas foi totalmente alterada. Então, preservar a memória cultural dessas pessoas é também falar da tragédia”, afirma Ana Cristina.
A lembrança daquele 5 de novembro de 2015 é recorrente para Antônio Pereira. Ele estava no centro de Mariana (MG), mas ao receber notícias do rompimento da barragem voltou imediatamente ao distrito. Antônio se recorda que ajudou no resgate de uma criança e uma idosa. Segundo conta, o memorial da tragédia tem o apoio dos moradores. “Senão daqui a pouco a empresa faz uma nova barragem no local. E não queremos isso. São mais de 300 anos de história naquele lugar que a mineração destruiu. E isso não pode ser esquecido”, diz.
Se por um lado as lembranças individuais provavelmente serão carregadas pelas vítimas por toda a vida, por outro, o desafio de construir uma memória coletiva permanente não é dos mais fáceis. E esse é também o objetivo do Compat. “A exemplo do Memorial de Hiroshima, no Japão, ou das Torres Gêmeas, nos Estados Unidos. São exatamente para isso: em nome da memória e para que não se repita”, reitera Ana Cristina.
O rompimento da barragem da Samarco é considerado a maior tragédia ambiental da história do Brasil. Além de destruir a vegetação nativa e de poluir a bacia do Rio Doce, o episódio deixou 19 mortos. Para o historiador Alfredo Ricardo, autor de pesquisas sobre memória de desastres ambientais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a tragédia de Mariana não pode ser entendida como excepcional e impossível de se repetir. “Se não lembrarmos conscientemente, lembraremos como um susto, na próxima vez que a ganância ditar as regras da exploração ambiental”, alerta.
Segundo Alfredo Ricardo, rememorar equívocos que já ocorreram não garante um acerto no futuro. No entanto, as iniciativas que preservam a memória coletiva sobre esses erros são um primeiro passo para se desviar deles. “Catástrofes certamente acontecerão, entretanto cabe à sociedade como um todo buscar diminuir ou anular o impacto delas. O memorial é uma intencionalidade materializada e tem o objetivo de lembrar o que alguns querem esquecer”.
Memória fotográfica
A memória da tragédia será mostrada neste mês em uma exposição fotográfica organizada pelo Corpo de Bombeiro de Minas Gerais. A mostra Paisagens que Transformam ocorrerá no Museu dos Militares Mineiros entre 16 e maio e 17 de junho. Ela retratará a percepção dos bombeiros e policiais que atuaram após o desastre.
Também haverá imagens voltadas para uma comparação entre o antes e o depois, permitindo observar a transformação da paisagem. A sala da exposição estará ambientada cenograficamente com objetos que remetem ao desastre de Mariana.
Reparação
A reparação social e ambiental da tragédia teve nesta semana novos capítulos. Na segunda-feira (2), o Ministério Público Federal (MPF) impetrou ação civil pública, em que estima o valor dos prejuízos em R$ 155 bilhões. O cálculo foi feito baseado na comparação com a explosão da plataforma Deepwater Horizon, ocorrida em 2010 no Golfo do México.
Os procuradores responsáveis pela ação também criticam o acordo entre as mineradoras, o governo federal e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo. Segundo eles, as medidas são insuficientes. O acordo prevê o aporte de aproximadamente R$ 20 bilhões ao longo de 20 anos, um valor bem inferior aos R$ 155 bilhões pedidos na ação.
Enquanto não há definição judicial sobre os detalhes da reparação, os antigos moradores dos distritos vêm recebendo ajuda baseada na solidariedade. Em março, as famílias começaram a ter acesso à verba de R$ 1,1 milhão, valor acumulado nas contas bancárias abertas pela prefeitura de Mariana para receber doações de todo o país.
Um novo reforço está perto de se materializar. Parte do dinheiro arrecadado em um show da banda norte-americana Pearl Jam deverá chegar aos produtores rurais atingidos pelo desastre de Mariana, por meio de projetos de recuperação e cursos de qualificação. São R$ 120 mil. O assunto foi tratado em uma reunião da Agência de Águas da Bacia do Rio Doce (Ibio) ocorrida há duas semanas. Terá início nos próximos dias um projeto baseado na agricultura sustentável e voltado para a recuperação produtiva e ambiental na região dos distritos afetados.
O Pearl Jam fez um show no estádio Mineirão, em Belo Horizonte, em 20 novembro de 2015. Na ocasião, a banda anunciou a doação de parte da bilheteria para projetos que contribuíssem para reduzir os impactos do rompimento da barragem. A Vitalogy Foundation, braço social da banda, selecionou três entidades brasileiras para receber os recursos. A Ibio foi uma delas.
Agência Brasil